
A CRUZ, A CRUZ SÓ?!... NÃO!...

Mas aquela cruz, no cimo do monte, ou por ser cruz ou por estar no cimo do monte, fascinou-me. Gostei sempre das lonjuras a rondar o infinito que os montes nos oferecem. Permitem-nos entrar no recinto de Deus!... Linguagem simbólica como tudo o que é linguagem!...
Jesus escolheu os montes da Judeia para nascer, andou pelas montanhas da Galileia e regressou a Jerusalém, subindo ao monte “Moriá” e daí ao Calvário onde havia de morrer.
Aquela cruz erguida ali, no cimo daquele monte, falava-me de condenação e amedrontava-me com o pensar no suplício de tantos que se arrastam na solidão. Pensei em crianças doentes e deficientes; nas que não são amadas e mesmo rejeitadas ou vivem fugindo da guerra, sem dela fugirem; nas que são maltratadas, espancadas, exploradas e abusadas.
Subi mais um degrau e vi jovens e são tantos, marginalizados, drogados, servindo interesses desconhecidos!... Será o lucro razão suficiente para tanta vileza?!... Pobres?!... Pensam que lhes oferecem uma forma gostosa de viver, mas enganam as suas frustrações, amarfanham os seus sonhos e perdem a cabeça, fugindo dos problemas, de si, dos outros e da vida!... Há muitos que não encontram sabor para a vida, nem razões para tanto sofrer!
Vi, naquela cruz, tantos adultos pregados no horror do desespero, por se encontrarem sós, mesmo sem alguém para testemunhar o seu sofrer. Vi velhinhos cansados da vida, não pela vida, mas pela solidão desta sociedade de comunicação. Contradição?!... Verdade!... Comunica-se, sem comunicar!... Falta comunhão! Não há comunidade, mas jogo de interesses!...
Vi homens e mulheres de todas as idades e de todas as condições, vociferando aos céus o seu abandono. –“Meu Deus, Meu Deus porque me abandonaste”!...
Aquela cruz solitária trazia-me á memória mortos que morreram sem terem vivido. Há vidas que não são vidas!...
De todos os epitáfios, nenhum me ficou tão gravado como aquele que li algures: “ Porquê um nome, se na morte, uma cruz basta para dizer o que foi a vida”.
Uma cruz só, caída no chão ou levantada ao alto é um sinal ambíguo!... Dor ou sofrimento, morte por acidente ou morte matada, vida destruída na pressa de viver. Vida compacta que armazena, no pouco espaço de tempo, uma larga ambição de prazer ou desprazer. Vive-se sofregamente!... O amanhã não existe, os outros muito menos!... Uma cruz só?!... Não!... É sinal de muita dor!... É sinal de martírio.
Uma cruz com Cristo, essa sim, é sinal de Esperança que dá sentido e valor a todas as dores. É altar onde morre o Homem e resplandece Deus. É sacrifício que não se esfuma no tempo, mas se eterniza, transubstanciando o nada que nós somos Naquele que tudo é.
A cruz, sim a cruz, mas não a cruz só! Ela com Ele , para que, na união dos dois, resulte o mais do nosso existir.
Nele saberemos que uma cruz não basta, porque Nele temos um nome e esse sim nos basta: Ser filho, no Filho de Deus.
Ele prescindiu da honra e do nome que era o Seu, para ser chamado Filho do Homem. Na cruz “cruzaram-se” os dois: Ele autoproclamou-se Filho do Homem e nós reconhecemo-Lo, Filho de Deus. Oh!... Que solidariedade!...
Uma cruz só, não!...
Bouça Pires
No alto do monte!... Uma Cruz!... Solitária!... Sinal ambíguo!...
Será grito de alma elevado ao céu?!... Vida oferecida em sacrifício?!... Prece agradecida?!... Ponto de convergência ou marca de separação?!... Une ou divide?!... –“Quando for elevado!...” Profissão de Fé de um povo?!... Registo de acontecimento histórico, sinal de monumento desaparecido, documento de uma época, de momentos decisivos, de templos ou de altares substituídos em invasões sucessivas?!... Ara de povos pagãos que demandaram estes lugares, arrastados pelos seus rebanhos ou fugindo de perseguições?!...
De pedra, resistindo aos ventos que sopram de todas as direções!... Um pouco fendida e gasta pela erosão, mas firme no seu posto de vigia.
Interrogam-na e ela responde sem se deixar incomodar com qualquer disparte, injúria, ofensa ou blasfémia! É testemunha de muitos silêncios, de algumas preces e lágrimas.
Rodeada de lendas é prenhe de história que não é possível narrar!... Foi há muitos anos!... Perde-se na neblina do tempo!... – Sempre me lembro dela estar ali!... Meus pais diziam mesmo e os pais deles ali a conheciam.
Ali, como farol, guiando os caminhantes, nas “vias sinuosas” mal definidas agora pelo abandono das terras de que ervas e arbustos tomaram conta como propriedades sua. As terras não são de ninguém e, cada vez menos, dos que se dizem senhores delas. Aos velhos faltam-lhe as forças, mesmo querendo agarrar-se a elas, aos novos falta-lhes a vontade. Há, como sempre, exceções, figura de estilo!...
Sentei-me sobre a pedra fria onde a sombra da cruz se projetava empurrada pelo inclinar do sol! Ele reverente, fá-la ser mais do que ela é, sombra de si própria, imagem doutra realidade.
Ali, sentado, saboreei o farnel das minhas aventuras. Partilhei aquela mesa com outros, talvez muitos outros que, ali, estenderam a sua toalha de linho cheia de outras iguarias. Os mesmos motivos, modos diferentes!... Se tu, ó cruz, nos contasses?!... És testemunha! Mas guardas, para ti e para ti só, o que presencias-te!... Fiz de ti minha confidente, como tantos mais!... Abracei-te pois só o Amor, sabe avaliar a cruz!...